sábado, 26 de março de 2022

Kanye West, a divindade delirante

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Kanye e Donda

Depois de semanas digerindo Jeen-Yuhs, o documentário-trilogia sobre Kanye West, sinto-me pronta para uma breveissima reflexão de 1500 palavras sem que ninguém me pague por isso. E não digo digerindo em um mau sentido, porque não é como se eu não gostasse do Ye. Nem sequer tenho vergonha de admitir esse traço da minha personalidade (pergunta pro meu chefe sobre a conversa que tivemos em fevereiro). Os três filmes nem sequer me fizeram mudar de opinião sobre ele. O que pegou precisamente é que eu nunca tinha entendido sua personalidade e agora a história cobrou um pouco mais de sentido. 

Comecei a escutar Kanye de verdade mesmo somente em 2018, mais ou menos na mesma época do breakdown total, sempre "separando a pessoa do artista”, e então veio o documentário para me dizer que fazer essa separação não tem a menor lógica. Eu não deixei de achar que Kanye tem sérios problemas a resolver entre ele e sua mente, mas entender como tudo foi se encaminhando até chegar ao que conhecemos hoje de certa forma o humanizou. Mission accomplished, Coodie.

E depois, se a gente for pensar, ele não foi acusado de assassinato, nem de pedofilia, nem de se masturbar na frente de fãs, nem de forçar relações sexuais com bartenders. Seus únicos crimes até aqui foram dizer uma desproporcional quantidade de estupidezes, ter opiniões problemáticas e encher o saco das pessoas até a exaustão. 

Quando Kanye lançou The College Dropout, seu primeiro disco, o que estávamos mais acostumados a ouvir em termos de rap era 50 Cent, Ja Rule ou Nelly. A estética era basicamente peitorais definidos totalmente expostos ou cobertos por uma justíssima tank top branca, bonés, colares de ouro com pingentes de 15 centímetros e calças XL. Letras que falavam sobre gangsters, pimps ou que objetificavam mulheres eram a regra.

De repente apareceu esse homem, que até então produzia músicas para Jay Z, Ludacris e outros rappers (e não-rappers), falando sobre seus dentes com arame, sobre não se importar com o que os outros dizem, sobre morte, sobre Jesus, sobre pedir a deus que o proteja de todo o mal que existe no mundo. E literalmente sobre abandonar a faculdade, por falta de dinheiro ou simplesmente por aversão àquele ambiente elitista. 

Hey mama: a influencia de Donda 

Com o lançamento dos seus dois discos mais recentes, Donda e Donda 2, o resto da humanidade descobriu que Donda era o nome da sua mãe. Muita gente sabia da importância de Donda na vida de Kanye, mas poucos sabiam quem era Donda de fato e de que forma ela influenciava Kanye. Até ficarmos totalmente hipnotizados com os diálogos de mãe e filho brilhantemente captados por Coodie, diretor de Jeen-Yuhs, no começo dos anos 2000.

Donda o ensinou a voar mantendo os pés no chão e por muito tempo foi o que ele fez. Kanye não deixava ninguém dizer que ele não podia, porque ele sabia que podia. Desde que tinha 20 anos, Kanye sabia perfeitamente onde ele ia chegar, só precisava encontrar o caminho. Ele tinha tanta fé em seu potencial que a arrogância passou a ser só mais traço da sua personalidade. Kanye era talentoso e determinado, poderia se tornar um verdadeiro gênio dentro de pouco, e ele sabia muito bem disso. Ele e Donda. Kanye não tinha nenhuma dúvida de quem ele era e do que ele podia fazer, e trabalhava duro para que o resto do mundo também descobrisse. 

Não foi fácil provar do que ele era capaz. Seus amigos mais próximos sabiam, Coodie sabia. Os músicos com quem Kanye tinha trabalhado como produtor não negavam seu talento como beatmaker, que foi o que o introduziu no rap, mas o que ele queria mesmo era ser rapper, justamente aquilo pelo qual ele não era levado a sério. 

Passaram vários anos desde que Kanye se mudou de Chicago a Nova York para ser muito mais que um beatmaker até o lançamento do primeiro disco, em 2004. Depois de muito empenho para conseguir que a gravadora Roc-A-Fella, cujo dono era ninguém menos que Jay Z, assinasse um contrato com Kanye, foi ainda mais difícil conseguir que o disco finalmente fosse lançado. 

Como se a burocracia e a falta de vontade da gravadora já não tivessem sido suficientes para atrasar tudo, um acidente de carro quase levou Kanye desta para uma melhor. Foram meses de recuperação, que incluíram uma série de cirurgias para reconstruir a mandíbula. Já recuperado, Kanye continuava na geladeira da Roc-A-Fella e o álbum continuava sem data para sair. Foi só depois de Kanye lançar o clipe de Through the Wire, com seus próprios recursos e ajuda de Coodie, que já vinha gravando a vida de Kanye havia alguns anos com a ideia de um dia lançar um documentário, que a gravadora finalmente colocou uma data para o lançamento. 

The College Dropout levou o Grammy de melhor disco de rap naquele ano, surpreendendo muitas pessoas, mas nunca o próprio Kanye, que já praticava o discurso do seu primeiro Grammy antes mesmo de ter um disco ou um contrato com uma gravadora.

Quando Donda morreu, em 2007, em consequência das sequelas deixadas pelas várias cirurgias plásticas que vinha fazendo, aquela força que o empurrava para cima, mas que ao mesmo tempo o mantinha com os pés na terra, deixou de existir. 

Nos limites da insanidade

Agora, Kanye estava completamente convencido de que era uma espécie de deus, e nada poderia mantê-lo na terra. No meio do caminho, seu ego esbarrou com os primeiros sinais públicos de problemas psicológicos, mais precisamente transtornos bipolares não-medicados por opção, e até agora ninguém tem certeza de quando começa um ou termina o outro, se se complementam, se são parte do mesmo problema. 

A partir de aí, todos fomos nos acostumando com um Kanye soberbo e muitas vezes insolente e grosseiro. Um Kanye que invadia palcos para humilhar jovens cantoras, um Kanye que afirmava ser deus sem sequer rir ao final da sentença. O Kanye MAGA (Make America Great Again) foi para os seus fãs talvez o mais difícil de engolir, mas ainda era possível encaixar a atitude em algum dos seus transtornos psicológicos. Era a única maneira de aceitar um negro apoiando Donald Trump. 

Ao cabo de pouco tempo foram surgindo situações cada vez mais delicadas. Kanye já começava a agir como aquele deus que acreditava ser, mas a relevância celestial que ele achava que tinha só existia na sua própria cabeça. Quando se candidatou à presidência dos Estados Unidos ficou claro que sua relevância não ultrapassava a barreira da cultura pop. Ele não era deus, ele não era presidente dos Estados Unidos e nunca o seria. 

Apesar de tudo, enquanto todos assistíamos a triste instabilidade mental de Kanye, enquanto a mídia repercutia todas as suas crises, enquanto muitos se preocupavam e outros tantos riam, ele continuava sendo relevante e lançando verdadeiras obras de arte. My Beautiful Dark Twisted Fantasy, de 2010, é até hoje considerado um dos melhores discos de rap do mundo e um dos melhores discos de todos gêneros lançados no século 21. 

Em 2018, o ano em que eu comecei a prestar mais atenção no Kanye, ele não lançou apenas um, mas dois discos absolutamente geniais: Kids See Ghosts, em parceria com Kid Cudi, e Ye, onde seu novo nome entrou em evidência pela primeira vez. Era chato estar o tempo todo justificando que o Kanye músico era incrível e que o Kanye pessoa não tinha nada a ver com aquilo (embora obviamente tivesse). Até que de repente nem sua mulher o suportou mais. Kim Kardashian, a mãe dos seus quatro filhos, a alma benevolente que esteve ao seu lado nos momentos mais bizarros, finalmente pediu o divórcio. Kim Kardashian definitivamente não seria a mulher que toleraria seus acessos de "deus na terra" por muito tempo. Kim é Kim. Todos sabemos quem ela é, como ela sempre gostou de aparecer e como se tornou famosa. De repente, aquela mulher livre, autossuficiente e voluptuosa estava casada com uma espécie de pastor, que só falava de Jesus e comandava um culto dominical. Não fazia o menor sentido.

Kanye nunca mais deixou de agir como se fosse uma espécie de Jesus moderno. Fez a vida de sua ex-mulher bastante difícil, resistindo a conceder o divorcio o máximo que deu. Ye humilhou a ex-esposa publicamente o quanto pôde e óbvio que também sobrou para o novo namorado dela, o comediante Pete Davidson.  

Genio incomprendido?

Desde então, Kanye vem se prestando a papéis tão lamentáveis que, apesar de tudo, dão pena. A mesma pena que a gente sente quando assiste o documentário e vê o quanto ele se empenhou e deu tudo o que tinha para ser levado a sério como rapper.

Kanye acha que é deus, mas ele não tem poder nem sobre ele mesmo. Talvez ele até seja o famigerado gênio incompreendido, mas o triste é que para muitos ele vai deixar esse mundo não como o artista talentoso que revolucionou o rap, que lançou discos icônicos e que coleciona Grammys, mas como o rapper desequilibrado que pouca gente leva a sério, que alguns sentem pena e que grande parte aponta o dedo para rir. 


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