quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Um relacionamento tóxico

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Minha relação com a música é aquele tipo de relação bastante corriqueira entre seres humanos: eu a amo, mas não há reciprocidade. Todo mundo já passou por isso em algum momento. Eu, no entanto, venho atravessando esta situação durante mais da metade da minha vida.  

Comecei a gostar de música de verdade quando tinha 11 anos, mas ainda não sabia que ela não gostava de mim. Não sabia nem que isso era possível. Na sexta série já bastante sofrimento eu tinha com o amor não correspondido do meu colega Gilberto. 

Porém, a vida passa e nunca deixa de surpreender. Descobri que a música me queria bem longe dela aos 16, quando pedi um violão de presente para os meus pais e fui ter aulas grátis com o professor de ensino religioso do colégio.  

Um professor de ensino religioso dando aulas de violão para uma adolescente de cabelo rosa com uma tatuagem de cereja atrás da orelha não tinha absolutamente nada para dar certo. Mas meus pais já tinham feito muito pagando por aquele Michael preto com cordas de aço, eles não estavam dispostos a pagar também por aulas para que eu pudesse tocá-lo. 

Sendo sincera, eu realmente nem queria um violão, eu queria um baixo. Fazia uns dois anos que eu tinha visto na Capricho a foto de uma menina que tocava baixo e quis tocar também. Nem sabia direito o que fazia um baixo, mas vendo alguns shows me convenci que era muito mais fácil de tocar que uma guitarra. Tinha menos cordas, eram mais grossas e não precisava daquele mundaréu de pedais. Mas que família baixa-renda compra um baixo elétrico para uma adolescente que não toca baixo elétrico?

Minha vontade aumentou quando meu melhor amigo um dia estacionou o carro do pai dele na frente da minha casa e saiu dele carregando seu baixo Tagima e uma espécie de amplificador e simplesmente deixou aquilo na minha casa. Uns amigos tinham me ensinado a tocar a intro de Come as you are e eu fiquei dias e dias tocando aquilo no meu quarto, até o momento em que ele foi buscar seus pertences porque precisava ensaiar. Eu estava fascinada.

Mas, voltando ao violão, que era o que havia, eu realmente não tinha muita escolha. Era o professor de religião ou nada. E eu não gostava nem um pouco das músicas que ele me ensinava. Olhava para os meus dedos vermelhos, as marcas das cordas quase atravessando a pele, e sentia que aquilo não valia a pena. Quer dizer, eu realmente estava sofrendo daquele jeito para tocar Esperando na Janela do Gilberto Gil? 

Eu estava careca de saber que quase todas as bandas que eu gostava usavam três ou quatro acordes em suas músicas, então por que raios aquele senhor não me ensinava o que eu queria tocar? Mas ele era um professor de ensino religioso, ele não ia aprender a tocar Blitzkrieg bop para depois me ensinar. 

Dois meses depois, eu estava a ponto de desistir. Tentava sem sucesso tirar as músicas que eu gostava imprimindo cifras do Cifra Club e não tinha jeito nem com a ajuda com meu namorado da época, que era guitarrista de uma banda de pop punk. Então decidi dar a cartada final. Levei para a aula meu CD da Avril Lavigne, Under my skin, e perguntei se a gente podia escutar e tirar alguma música dali. Ele disse que não ia ter como escutar durante a aula e perguntou se poderia levá-lo para casa. Eu disse que sim. 

Na semana seguinte, cheguei ansiosíssima. Ele disse que não tinha tido tempo de escutar, mas que com certeza na próxima semana já poderíamos tocar algo. Too late, meu amigo. Aquele foi meu último dia e nunca mais voltei a pôr as mãos no meu CD da Avril. 

Durante algumas semanas continuei tentando em vão tocar músicas do CPM 22 com cifras do Cifra Club. Pegava o violão com cada vez menos frequência e depois que eu e o namorado guitarrista terminamos, ele se tornou mero objeto decorativo. 

Nessa época eu já sabia que queria ser jornalista, mas não sabia que tipo de jornalista. Quando saiu a primeira edição da revista Rolling Stone Brasil, naquele mesmo ano, uma luz surgiu no meu caminho. Eu não tocaria música, eu escreveria sobre ela.

Oito anos mais tarde, quando entrevistava uma contrabaixista de verdade para o jornal em que trabalhava, a vontade de tocar um instrumento voltou. Mas não sem trazer com ela a lembrança do pesadelo que foi aquela tentativa de aprender a tocar violão. Enquanto esperávamos o carro para voltar para a redação, comentei com a fotógrafa sobre a vontade de tocar e a completa negação que eu era com as cordas.

— Ué, toca bateria então. —  ela disse.

E la fui eu, aos 24 anos, me matricular em um instituto de bateria. Aprendi a ler partitura e com o tempo até conseguia acompanhar algumas músicas mais fáceis inteiras. Era cansativo, mas não doía como o violão. No entanto, nunca levei aquilo muito a sério. Quer dizer, eu não tinha uma bateria, eu jamais teria uma bateria, de onde eu ia tirar dinheiro para comprar uma bateria? Onde eu colocaria uma bateria? Os vizinhos de onde quer que eu morasse me deixariam tocar bateria se eu viesse a ter uma? 

Talvez se eu tivesse descoberto que aquele era meu talento oculto, que eu havia nascido para ser baterista, poderia considerar todas essas questões, mas claramente não era o caso, aquilo era (mais uma) uma ilusão, e um ano depois abandonei as aulas porque decidi vir para Buenos Aires. 

Durante um tempo a música acabou ocupando um espaço muito pequeno na minha vida. Quer dizer, eu apenas a escutava. Tentei colaborar de Buenos Aires com uma revista de música que eu escrevia quando estava na faculdade, mas durou um suspiro. Como eu não tinha mais qualquer intenção de realmente voltar para o jornalismo, sentia falta desse incômodo na minha vida. 

Um dia abri o armário onde guardávamos somente tralhas e resgatei um pianinho que o Javi tocava quando era criança. Era muito pequeno e tinha só duas oitavas, mas funcionava perfeitamente e soava como um teclado normal. Procurei tutoriais no Youtube para aprender as notas e em pouco tempo já estava tocando A Pantera Cor de rosa. Comovido, Javi decidiu ir à casa do seu amigo buscar um teclado midi que eles tinham comprado juntos para uma futura banda que nunca existiu. Agora pelo menos eu tinha um teclado de tamanho normal.

Depois de quase um ano aprendendo com vídeos do Youtube, decidi fazer aulas com uma professora que oportunamente morava no caminho entre a minha casa e o trabalho. A primeira coisa que ela fez foi me ensinar a ler uma partitura de verdade, bastante diferente do que eu lembrava de bateria. Aquilo mudou a minha vida. Saber o que significava aquelas linhas e aqueles símbolos fazia com que qualquer pessoa pudesse tocar qualquer música. Menos eu, é claro. Apesar de saber ler, a dificuldade era real e oficial, e dependendo da música eu demorava meses para conseguir tocar inteira. 

No fim daquele ano fiz uma das minhas. Aproveitei as férias da professora e depois as minhas próprias férias para nunca mais voltar às aulas. Meu plano era procurar alguém que me desse uma base mais teórica. Javi tinha me dado um teclado de verdade de aniversário e eu estava realmente empolgada em avançar nos meus conhecimentos. Só que daí começou a pandemia e, bom, nada sucedeu. Continuei andando em círculos, tocando o que eu já sabia e procurando partituras de outras músicas que eu gostava. 

Este ano, minha obsessão pelo Joji me fez querer aprender a tocar absolutamente todas as músicas dele que tinham piano, e tocá-las me levou a querer cantá-las também. Eu não podia estar satisfeita em ter me mantido, aos trancos e barrancos, tocando um instrumento por quatro anos ininterruptos, então fui ter aulas de canto. Durou exatas 10 semanas, até que a minha professora resolveu se mudar para o outro lado da cidade sem eu nunca ter aprendido a cantar Glimpse of Us como corresponde. 

É isto. A música realmente não quer nada comigo. E eu nem contei a parte em que escrevi uma letra e uma melodia e tentei produzir com ajuda semi-profissional. Óbvio que a faixa não foi (e jamais será) finalizada. 


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