segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Mas e a crise?

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Eu sempre soube que a Argentina estava em crise. Todo mundo sabe desde muito tempo que a Argentina está em crise. Eu não era tão jovem quando vim morar aqui, mas mesmo assim a famigerada crise não me amedrontou. Talvez porque eu não tivesse planos concretos. Quer dizer, eu não vim morar na Argentina para trabalhar, juntar dinheiro, voltar pro Brasil, converter meus pesos em reais e comprar um apartamento. 

Ninguém se preocupa com a crise do país para onde está indo viajar. Você simplesmente quer passar um tempo naquele lugar e pronto. E mesmo que eu não tenha vindo somente para umas férias de duas semanas, no fundo era sim uma viagem. Uma longa viagem. Uma viagem em que daria tempo de conhecer todos os cantos de Buenos Aires.

Só que no meio dessa viagem aconteceu aquilo: eu queria que ela acabasse, mas queria continuar em Buenos Aires. Quando eu finalmente consegui um trabalho fixo e assinei o contrato de aluguel de um apartamento, tudo isso no mesmíssimo dia, eu senti que ela finalmente tinha chegado ao fim. Agora eu realmente morava em Buenos Aires.

Mas e a crise? Me perguntavam lá do Brasil. E eu não via crise alguma. Sim, meu salário era bem baixo, mas eu não tinha nenhuma experiência na Argentina, nem em agências de publicidade e meu espanhol ainda tinha problemas. Sim, eu via gente dormindo na rua ou mexendo no lixo quando eu ia para zonas mais centrais. E sim, eu ouvia a classe média reclamando que o dinheiro não chegava ao fim do mês. Mas isso não podia ser a crise. Ou podia?

Do meu apartamento em Belgrano eu obviamente nunca pude vê-la. Eu sei que ela existe, eu sei que existe um mundo além de Belgrano e além de Buenos Aires. E eu sei que ele é muito diferente. Mas se eu vivesse desconectada, jamais diria que aqui existe uma crise econômica há anos, agora potencializada pela pandemia. Eu continuaria vendo a classe média - a mesma que “não chega ao fim do mês” - indo passar as férias na França ou no Marrocos, continuaria vendo os restaurantes lotados e as senhoras caminhando com sacolinhas da Sarkany.

No segundo mês do isolamento social obrigatório eu vi vários estabelecimentos fechando nos arredores da minha casa. Cada vez que eu saía tinha pelo menos uma nova sala vazia e sem os letreiros. Era uma tristeza. Eu, que nunca tinha visto a crise do meu apartamento, agora podia vê-la da calçada. Finalmente estava acontecendo o que todos no Brasil sempre acreditaram que sucedia, pensei. 

Continuei saindo eventualmente para comprar itens básicos de sobrevivência e de repente vi que um dos lugares vazios agora tinha papel pardo nos vidros, a porta aberta e homens pintando as paredes internas. Outro deles, a duas quadras, agora era verde água. Quando terminaram de colocar o letreiro do novo café cool na sala onde dias antes havia papel pardo, uma loja de donuts com a fachada pink tinha aberto, do nada, a 50 metros. Eu nem vi o processo, de repente estava lá. Na última vez que saí, estavam reformando um lugar onde há poucos meses funcionava uma loja de sapatos e a esquina verde água tinha recebido um letreiro: boulangerie et patisserie.

Mas e a crise? Continuam me perguntando os brasileiros. E eu não sei bem o que responder. Um vez tinham me dito aqui que mesmo em crise, mesmo reclamando, as pessoas saiam, viajavam, iam a restaurantes e compravam sapatos porque o dinheiro valia cada vez menos e era preferível gastá-lo de uma vez do que vê-lo perder seu valor todos os meses. Tem isso. E tem também a sociável cultura porteña e essa herança dos bons tempos, da abundância, de quando Buenos Aires era puro luxo, a Paris latinoamericana, muito chique, muito culta. Muito boulangerie et patisserie.

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