terça-feira, 4 de abril de 2023

Nós não éramos cool

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Dia desses comecei a ler uma thread no Twitter que falava sobre como as comunidades alemãs do Sul do Brasil vivem uma realidade que não tem nada a ver com a Alemanha atual, que ficaram estagnadas no tempo, com costumes e ideias que só existem ali. Parei de ler quando percebi que o foco estava em cidades como Blumenau, que clamam ser “um pedacinho da Alemanha no Brasil”.

Eu sou descendente de alemães. Alemães-luxemburgueses por parte de pai e, até onde eu sei, só de alemães por parte de mãe. Pertenço à quinta geração nascida no Brasil. 

Tanto meu pai como minha mãe são de uma cidadezinha chamada Cândido Godói, no interior do Rio Grande do Sul. Cândido Godói atualmente tem seis mil habitantes. Eles dizem que nasceram na zona rural. Não sei bem se naquela época existia uma grande diferença entre zona rural e urbana, mas sei que moravam isolados de quase tudo e tinham que caminhar vários quilômetros para ir ao colégio ou conseguir a comida que eles mesmos não podiam produzir.

O primeiro idioma que ambos tiveram acesso em suas casas foi o alemão. O português veio um pouco mais tarde, com o colégio. Era o mesmo alemão que falavam seus pais e seus avós. O mesmo alemão que trouxeram Christoph e seus filhos quando desembarcaram no Brasil com uma mão da frente e outra atrás. O mesmo alemão que falavam todas as pessoas que moravam em Cândido Godói e outros povoados próximos. O mesmo alemão com o qual meus pais trocam algumas palavras de vez em quando. O mesmo alemão que minha vó, a única viva, ainda fala diariamente.

Em Cândido Godói não tinha isso de arquitetura “alemã” ou “gastronomia alemã”. As casas eram construídas como dava e o que se comia era o que tinha, o que se podia plantar e colher. Os descendentes de imigrantes que até hoje moram em Cândido Godói não se vestem com trajes típicos em outubro, porque lá outubro é um mês como outro qualquer. Talvez hoje em dia alguém até organize uma festinha, mas ninguém atravessa o Brasil para ir até lá ficar bêbado e comer batata recheada. 

Minha irmã também nasceu em Cândido Godói, mas na zona urbana, que provavelmente já estava mais desenvolvida na década de 1980. Ela morou com meus pais em uma casa bonita que ficava em frente à que minha vó comprou depois de finalmente sair da roça. Alguns anos mais tarde, os três se mudaram para Santa Rosa, onde eu nasci.

Santa Rosa ficava a apenas 30 quilômetros, mas era bem diferente de Cândido Godói. Era cidade grande. Tinha 60 mil habitantes e havia gente de origens bastante variadas. Santa Rosa era mais moderna, mais cool, tinha gente que viajava para outros estados, e inclusive para outros países (!). Falar alemão na rua, algo absolutamente normal em Cândido Godói, não era tão bem-visto em Santa Rosa. Era coisa de gente da roça, de “colono”, de gente sem estudo, de gente pobre. Sim, pobre. Porque afinal o desejo de Christoph Lunkes nunca se realizou. Pelo menos não que eu saiba. 

Quando eu era criança nunca quis aprender alemão porque essa era a visão que eu tinha das pessoas que falavam alemão. Eu não queria que as minhas amigas encontrassem minha vó de casualidade na minha casa porque ela poderia falar algo em alemão ou inclusive em um português carregado de sotaque. E eu morria de vergonha. Eu odiava meu sobrenome. Queria ter um sobrenome mais comum, um que todos conhecessem. Nunca soube de ninguém em Santa Rosa que tivesse orgulho da sua ascendência alemã. Não quer dizer que todos sentissem vergonha, como eu. Simplesmente era algo que não fazia muita diferença, como é para mim agora. 

A primeira vez que vi uma pessoa ter orgulho de ter sobrenome alemão foi quando me mudei para Balneário Camboriú para estudar jornalismo. Essa pessoa tinha nascido em Itajaí e o sobrenome alemão, que sequer figurava na certidão de nascimento, era, na verdade, da sua mãe. 

Recém aí comecei a conhecer o outro lado dessa história. Tudo aquilo que para mim era vergonhoso, para algumas pessoas era o máximo. Ter sobrenome alemão, ter pais que falavam alemão, ter a pele muito branca. Era estranho, eu tinha 18 anos e não sabia se eu tinha que ter orgulho também ou se tudo bem continuar tendo vergonha. 

Finalmente conheci Blumenau e ela definitivamente não se parecia nada com a Cândido Godói dos meus pais e avós. Era chique, era cool. Era uma cidade turística, todos queriam ir para Blumenau, para a Oktoberfest. Aquilo não tinha nada a ver comigo, com a história da minha família. Para mim, comida típica alemã era a que minha vó servia: mandioca, massa caseira, pão de milho com melado. Talvez a cuca de keschmier que ela fazia para nos receber era o que mais se aproximava de algo típico da gastronomia alemã. A primeira vez que comi batata recheada foi no Atlântico Shopping e até hoje não sei que gosto tem o chucrute.

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